O autor(sic) resolveu implicar com tudo. Afinal, se sobram idéias e sobram personagens e toda essa conversa sobre a falta de emprego que anda por aí, não é uma boa aproveitar isso? Botar o personagem para trabalhar de verdade é coisa complicada. Alguns andam bem vagabundos, viciados em comodidades e, para isso, optam por se tornar verdadeiros clones. Clones de Gregor Samsa, Ulrich, Tom Joad, Lolita, Karenina, Diadorim, Joãozinho… toda essa mudança, em parte, quem sabe não é fruto dessa onda de profissionalização: escritores formados, escritores super-técnicos, escritores-assessores de imprensa, escritores profissionais que sustentam famílias e pagam as contas em dia preocupadíssimos com agenda de prêmios, palestras, trocos extras em eventos, mulheres charmosas. Os personagens começaram a exigir regalias.
Aí, você fica cada vez mais tentado a pedir pra eles: ei, gostaria que você fosse aquele personagem? Aquele personagem do livro tal, sabe? A tentação é dizer para os personagens: se você fizer isso teremos um livro bacana, vistoso, de capa dura e papel de qualidade, contrato assinado, aluguel em dia, editora, foto no caderno de cultura e jantar bacana.
O autor em questão nem acha que é escritor mesmo (aliás, o que é isto?), nem sabe se existe, digita umas frases no intervalo das leituras, entre um e outro café. É terrívelmente capaz de perder, com isso, a aura necessária do artista. Por isso, no espaço que lhe compete reina uma ditadura cruel. Um déspota nanico. É possível que, mesmo sem os adjetivos garbosos dos escritores atuais, ele considerar grande coisa essa mesa improvisada num quartinho de poucos e velhos móveis.
E não venham lhe falar do leitor, aí, ele vira fera e perde um pouco a compostura: O leitor que se foda! Algumas pessoas torcem o nariz para esse tipo de comportamento “low-profile”. Por isso mesmo, para se livrar de tais incomodações, o escritor resolveu recrutar seus personagens à moda antiga das empresas, como se fosse um legítimo funcionário do setor do departamento de Recrutamento e Seleção. O primeiro passo é uma entrevista.
(nesse ponto o narrador ri, afinal, este hábito de escrever gera tanta e tanta confusão na vida do autor que, supostamente, sua preocupação com os personagens é meramente para se livrar da tarefa árdua de dar continuidade a uma história grande. que seja!!!)
autor: E se você morrer na primeira linha?
personagem: não importa.
autor: você está aqui na minha frente, no entanto, sinceramente, não sei quando vou precisar do seu trabalho. Pode ser que eu implique com a sua cara, pode ser que eu conheça uma mulher maravilhosa e largue tudo para ficar um ano ou dois num paraíso tropical regado a sexo e drinques exóticos. Ou pode ser que eu encurte a história e você não caiba nela.
personagem: eu tenho outra alternativa?
autor: sim, você pode me sabotar.
personagem: mas aí é auto-sabotagem. Além disso, você já é desajustado o suficiente para que eu me preocupe a minha situação. Embora, não seja feio como muitos escritores, nem solitário como tantos outros, você é inquieto. Isso me basta. Se eu realmente me importasse com o que vai acontecer esteja certo que não faltam jovens escritores de sucesso por aqui. Aliás, você nem é jovem.
autor: esse teu pensamento é tão desapegado que parece blefe.
personagem: sou realista. prefiro que você sente a sua bunda na cadeira e produza umas linhas. A minha parte eu faço. Faça a sua.
autor: está tentando me dizer o que fazer?
personagem: não, estou dizendo que cada um cumpre a sua função.
nesse momento o autor pensou em teclar <backspace> (o que é um terror para o personagem comum). Mas esse personagem não fez nenhum gesto. Se tudo fosse um blefe, diria que é excelente. Uma vez no livro o personagem escapa para sempre e torna-se muitas vezes arrogante. Agora, existem poucos personagens arrogantes antes de, de fato, entrar para a história.
autor: você sabe que meu controle sobre você é temporário. uma vez que você se transformar em história eu perco o controle
personagem: posso ser sincero? não importa.
autor: mas não te importas com nada? e se o texto for uma porcaria? você pode acabar na prateleira com manuais de contabilidade da década de 60 ou o Método Cooper.
personagem: nesse caso, quem lembrará? prefiro que você faça e pronto. Não sou um personagem inexperiente, sei que todo autor – principalmente o iniciante – é volátil. Quem sabe quando chegarem os eventos, os cheques, as fotos e as baladas, quem sabe você não se voltará para outras coisas?
autor: definitivamente vou aproveitar tudo isso. Meus escrúpulos são poucos.
personagem: por isso mesmo que faça o que você achar melhor. O seu desafio é acabar comigo de alguma forma e o meu é cooperar com isso.
autor: você me parece um bom personagem, mas, a verdade é que estou com muita preguiça para escrever.